domingo, 22 de maio de 2016

O homem de preto

Quando criança, até meus sete anos, eu não tinha o costume de brincar na rua todos os dias à noite, o que viria somente a se tornar um hábito já no final de minha infância; mas, em vez disso, era comum que eu passasse minhas tardes estudando e depois assistindo à tv, e, no comecinho da noite após o banho, jantava e esperava meu pai e minha tia voltarem do trabalho. Geralmente, eu ficarava a postos, só esperando o barulho do trinco do portão se abrindo, para me esconder em qualquer cômodo da casa, em baixo da cama, dentro do guarda-roupa, atrás da porta ou do sofá, ou mesmo dentro de um móvel semelhante a baú, que havia lá em casa. A brincadeira era boba e consistia em meu pai ou minha tia, quem chegasse primeiro, me procurar pela casa. Acho que isso não durou tanto tempo assim, mas tenho uma boa recordação dessa época e dessas brincadeiras. Em uma certa noite, quando esperava por meu pai, pois minha tia já havia chegado do trabalho, eu e minha mãe ouvimos o trinco do portão abrir, eu corri para me esconder, esperamos, esperamos mais um pouco, e finalmente nada. Ninguém chegou e nada aconteceu. Então minha mãe disse: “Isso devem ser os meninos brincando na rua. Abriram o portão para pegar alguma bola que caiu no jardim.” Passaram-se algumas dezenas de minutos, até que meu pai chegou e, eu já esquecida da folia da brincadeira, já nem estava mais escondida. Esqueceríamos esse ocorrido banal se algo muito estranho não tivesse ocorrido naquela noite, o que somente saberíamos no dia seguinte. Na próxima noite, acho que devia ser uma sexta-feira, eu fui brincar na rua com alguns colegas vizinhos e, em um certo momento, meu pai chegou do trabalho, deu boa noite para todo mundo, eu pedi sua benção, como de costume, e ele entrou em casa. Mal tinha ele entrado pelo portão, uma colega se virou para mim e disse: “Ontem seu Francisco (meu pai) tava muito estranho... todo vestido de preto, chegou de cabeça baixa, nem cumprimentou a gente, abriu o portão e entrou. A gente ainda deu boa noite, e nem teve resposta.” Achei tão estranha aquela história... daí perguntei qual foi o horário em que aquilo tinha ocorrido e mais de um colega confirmou que havia sido no horário aproximado em que eu, minha mãe e tia havíamos ouvido o abrir do portão, quando esperávamos justamento pelo meu pai. Obviamente eu não havia contado nada para meus colegas sobre o fenômeno do dia anterior, muito provavelmente porque, até aquele momento, eu já nem lembrava do ocorrido. Eu ainda insisti, como quem não quer nada, em perguntar se, por acaso, os meninos entraram no jardim da nossa casa na noite anterior para pegar alguma bola ou por outro motivo, mas eles negaram e ainda insistiram que a única pessoa que eles viram entrando havia sido meu pai com os trajes pretos.

Foi então que aquela história começou a tomar corpo e, nos outros dias, outros vizinhos relataram que às vezes, sempre à noite, viam mesmo um homem vestido completamente de preto, que saia da nossa casa e ia na direção de um cajueiro bastante antigo, que ficava no terreno baldio da frente. Esse cajueiro, por sua vez, já era bastante famoso entre a meninada da rua, que até lhe chamavam, carinhosamente, de cajueiro do malassombro. As intenções do tal homem de preto nunca foram claras, mas volta e meia alguém o avistava, inclusive alegando que ele era o culpado de pedras mal assombradas, jogadas em transeuntes desavisados.

domingo, 15 de maio de 2016

O Curioso causo da cobra siri


Um causo bastante intrigante é o da cobra siri, uma cobra cuja dieta é peculiar e praticamente inacreditável. Minha mãe conta que uma vizinha nossa, em certa tarde, deitou-se com seu bebê em uma esteira no quintal de casa e adormeceu. Passada boa parte da tarde, a mulher acordou com algo que sugava seu seio, e já pensando que se tratava do seu filho recém-nascido, começou a se ajeitar na direção da criança. Porém, tamanho foi seu susto ao ver que não era seu bebê que mamava, mas sim uma cobra siri. Ao mesmo tempo em que a ardilosa cobra se deliciosa com o leite da mulher, também evitava que a criança chorasse, colocando seu rabo na boca do menino. A mulher ficou horrorizada ao perceber que a cobra continuava ali se alimentando de seu leite, e, às vezes, até parecia ameaçá-la com seus olhos de serpente, esperando por um movimento brusco da mulher para picá-la ou fazer algum mal a sua criança. A mulher, no entanto, já conhecendo outras histórias de cobras siris, esperou calmamente por longos minutos, até que a cobra ficou saciada, largou seu seio, retirou o rabo da boca da criança, e finalmente se embrenhou no mato alto.
Muitas mulheres, que moravam nos sítios e engenhos, ficavam apavoradas quando tinham bebês novinhos, pois se dizia que a danada da cobra era atraída pelo cheiro do leite materno. Imagine só, além de todas as dificuldades durante o resguardo, uma cobra faminta por leite de peitos desprevenidos, aparecendo no cochilo da tarde e ninando seu bebê com a própria cauda servindo de chupeta!


sábado, 7 de maio de 2016

Cobras vingativas e outras histórias


Quando criança, eu costumava ouvir e acreditar nas estórias fantásticas envolvendo diferentes cobras com personalidades bastante antropomórficas. Minha mãe contava que seu tio Severino, quando morava no Engenho Mupã, um belo dia se deparou com uma cobra gigantesca enroscada em uma bananeira. Não é segredo que sempre foi costume em sítio ou casa com quintal grande, espantar e matar animais peçonhentos, e deixar uma cobra daquelas tão perto de casa não era boa ideia, ainda mais tendo criança pequena. Então, meu também tio Severino arrumou um porrete e se concentrou na tentativa de desentocar aquela cobra traiçoeira de cima da bananeira. O maior problema é que aquela cobra se tratava de uma papa ova - nome que se devia ao hábito do animal se alimentar de ovos de passarinho – e como qualquer caboclo bem sabia, era uma bicha daquelas mais vingativas entre todas as cobras, tão vingativa que guardava rancor e esperava até a morte, fosse dela ou de seu agressor. Pois bem, meu tio sabia quão olímpica seria aquela tarefa, e não hesitou em estudar o terreno e se precaver de todas as formas para dar a porrada certeira na criatura. Porém, ele falhou em matar o animal com o primeiro golpe e, desesperado, ele buscou refúgio dentro de casa, já sabendo que não haveria mais salvação. No entanto, a fim de se proteger e a seus filhos, sua mulher simplesmente havia trancado a porta, deixando-o do lado de fora justamente com a cobra. No meio do desespero, ele se viu obrigado a sair correndo em disparada mundo afora. Foram muitas horas fugindo daquela serpente cruel, subindo morro, descendo morro, mais outro morro, e outro morro. Ele passou a tarde inteira correndo daquela cobra dos infernos, amarela e brilhante que se apoiava na ponta do rabo e lançava suas presas na direção de qualquer cristão que atravessasse seu caminho. Foi então que, por um milagre divino, já que suas forças se esvaiam depois de tamanha odisseia, ele avistou um rio em seu caminho. Relato aqui, caro leitor, baseado no que os antigos bem conheciam e replicavam, que toda cobra venenosa pode atravessar riacho ou mesmo um grande rio, bastando, porém, procurar uma folha seca no chão que seja suficiente para que a bicha derrame todo seu veneno, e finalmente possa adentrar na água. Quem bem conhece desses causos, ainda diz que se você ficar de tocaia enquanto uma cobra faz tal cerimônia, basta se aproximar da folha e derramar todo o veneno. Quando a danada voltar para recuperar sua peçonha morrerá de tanta raiva ao perceber a maldade que lhe fizeram (Convenhamos, por que tanto ódio dos antigos com esses répteis?). Mas voltando, foi assim que meu tio se salvou da vingativa papa ova, que, à propósito, é conhecida de outro causo ocorrido em Ponte dos Carvalhos. Minha mãe conta que lá pertinho de casa, no comecinho dos anos 80, uma moça, vizinha nossa, se deparou com uma papa ova no quintal de sua casa. Assustada, ela resolveu matar a cobra com uma paulada, assim como meu tio fizera, mas sem sucesso. A cobra fugiu e a moça entrou em casa. Porém, caro leitor, foi aí que começou a épica saga da luta do homem contra a serpente, pois a bixiguenta da cobra se escondeu entre alguns arbustos e ficou a espreita da moça. Toda vez que a moça colocava a cabeça do lado de fora da casa, a vingativa cobra também o fazia lá do seu esconderijo. Isso se repetia constantemente, e a moça não conseguiu sair de casa durante todo aquele dia. Ao voltar do trabalho, seu pai logo ficou sabendo da prezepada da moça em tentar matar uma papa ova sozinha, e, bastante bravo, começou a dizer: “E tu não sabe que essa cobra só vai se aquietar quando teu caixão sair daqui de casa?!” Mesmo a contra gosto, à tardezinha, o pai da moça resolveu acabar logo com aquilo, e tratou de buscar sua espingarda. Ele desentocou o danado do bicho e um duelo entre homem e serpente se desenrolou na boquinha da noite. Tamanho foi o acontecimento que alguns vizinhos se reuniram para presenciar tão grandiosa batalha (naquela época eram raros os muros entre as casas lá no bairro, e as pessoas circulavam livremente por dentro dos terrenos uns dos outros). De um lado, o homem empunhando sua espingarda, e do outro a cobra, enorme e equilibrada sobre sua própria cauda. A bicha era tão grande que praticamente atingia a mesma altura do seu oponente. O homem mirava na cobra, mas a danada se esquivava para um lado, então o homem se deslocava e a cobra mudava novamente sua posição. Isso se repetiu inúmeras vezes, e as pessoas que assistiam à cena já temiam pela morte do pai da moça, pois, após quase uma hora, era visível o cansaço do homem e a maior raiva do animal. Foi então que uma vizinha, já idosa, se aproximou daquele furdunço e, prevendo o pior, resolveu dar fim logo àquela briga. Ela pegou um cabo de vassoura e se dirigiu até o duelo, dando uma cacetada certeira na cobra. Segundo aquela senhora, a cobra já estava tão cega de raiva que nada mais via, senão aquele homem com a espingarda e, por isso, bastava apenas uma pancada forte para que o bicho desencarnasse desse mundo.
        Uma certa vez, também na vizinhança, o marido de uma moça recém casada voltou do trabalho e percebeu que sua mulher e filha dormiam no quarto, mas que havia um estranho barulho vindo da cozinha. Ao procurar de onde vinha aquele som, ele ficou surpreso ao perceber que havia metade de uma cobra enorme em baixo do armário. Aquele rolo de cobra tinha a cabeça e uma parte do tronco, mas parecia cortada, tal qual tivesse sido torada ao meio, ao passar pela linha férrea do bairro. Ela era tão forte, que havia quebrado a parte inferior da porta de madeira da cozinha, entrado na casa e continuava a se debater. Passado o susto, o moço pegou um facão e matou aquele rolo de cobra perambulante.
        Outro causo interessante, que segundo minha mãe é verídico (Ah, caro leitor, como se os outros causos relatados aqui não fossem?!), foi o de um menino de quatro anos que, ao buscar uma bola em baixo da cama em seu quarto, acabou levando uma mordida. O menino foi levado ao hospital, mas terminou falecendo sem ninguém saber o que realmente havia lhe mordido. Após investigação na casa da criança, a perícia, surpreendentemente, descobriu um ninho com 33 cobras jararacas morando em um buraco gigantesco em baixo de sua cama! 
        Finalmente, não posso deixar de falar de uma cobra também bastante cruel, a tal da cipó. Essa cobra é tão, mas tão ruim, que seu veneno tem ação praticamente eterna, visto que o indivíduo que fosse picado pelo bicho jamais engordaria em toda vida, ficando magro e seco igualzinho à cobra cipó. A cobra casco de burro é outro bicho ruinzinho que só ele, porque de tão pequenina, consegue se enfiar entre os cascos de equinos e bovinos, e ao menor passo em falso do animal, a vingativa serpente anã lhe pica e tira sua vida. 

Esses e outros causos de cobras fantásticas eram muito comuns na região, certamente porque cobras sempre despertaram medo e fascínio no ser humano. E em uma comunidade onde nem luz elétrica havia, não era de espantar ouvir uma série de causos sobre esses incríveis seres, cujo imaginário popular nos liga desde longínqua data.

domingo, 1 de maio de 2016

O pai do mangue e outras entidades protetoras

O pai do mangue é uma dessas criaturas mitológicas que poucos conhecem, porque, convenhamos, nem todo mundo mora perto do mangue. Os antigos pescadores lá do bairro onde cresci, relatavam que esse ser protegia os mangues, e quando aparecia, costumava ser na forma de um enorme redemoinho no rio, que devorava para dentro das águas as pessoas inexperientes que se aventuravam a desbravar os mangues e seus rios. Alguns diziam que se tratava de uma criatura meio aquática meio terrestre, um anfíbio por assim dizer, que ora vagava por entre os manguezais lamacentos, esgueirando-se entre as árvores, ora nadando no rio Pirapama ou seus afluentes. Até mais ou menos a década de 90, existia um costume herdado dos mais antigos, em que alguns moradores do bairro atravessavam, a nado, o rio Piraparama no seu trecho mais estreito, apoiando-se em um bambu sustentado entre as pernas. Após atravessar um extenso mangue, uma área de restinga, cruzar o rio a nado, e alcançar a outra margem do rio, também coberta de mangue, eles finalmente alcançavam a praia do Paiva, naquela época deserta, e hoje reduto granfino da Riviera pernambucana. Dessa forma, afloravam no bairro os causos de avistamento do místico pai do mangue. Já outros moradores, especialmente os pescadores, relatam que o pai do mangue aparecia um senhor negro, com chapéu de palha e um samburá nas costas, que, tendo um caranguejo em uma das mãos, vistoriava as tocas do crustáceo sempre dizendo: “Aqui tem caranguejo. Aqui não tem”, e colocava um caranguejo em cada toca desocupada. Assim como o pai do mangue, havia também seu primo, mais bem conhecido, o pai da mata, que supostamente protegia as florestas da ação perversa e destruidora dos homens que não respeitassem aquele habitat silvestre. Creio que uma espécie de pai da mata era o Tôsseco. Essa criatura, meio homem meio árvore, gigante e seca, costumava aparecer às pessoas que se aventuravam fundo nas matas nos arredores de Recife. Quando ela fazia sua aparição, geralmente era acompanhada de sustos, em que a criatura murmurava com uma voz grotesca “Tôsseco, tôsseco, tôsseco”, enquanto caminhava lentamente com suas pernas compridas e finas de madeira. 
Aparentemente esses “pais de ecossistemas” estão extintos na atualidade, pois constantemente recebemos notícias de que trechos, muitas vezes do tamanho de países da Europa, desaparecem anualmente devido ao desmatamento das florestas no Brasil.