Quando criança, eu costumava ouvir
e acreditar nas estórias fantásticas envolvendo diferentes cobras com
personalidades bastante antropomórficas. Minha mãe contava que seu tio Severino,
quando morava no Engenho Mupã, um belo dia se deparou com uma cobra gigantesca enroscada
em uma bananeira. Não é segredo que sempre foi costume em sítio ou casa com
quintal grande, espantar e matar animais peçonhentos, e deixar uma cobra
daquelas tão perto de casa não era boa ideia, ainda mais tendo criança pequena. Então, meu também tio Severino arrumou um porrete e se concentrou na
tentativa de desentocar aquela cobra traiçoeira de cima da bananeira. O maior
problema é que aquela cobra se tratava de uma papa ova - nome que se devia ao
hábito do animal se alimentar de ovos de passarinho – e como qualquer caboclo
bem sabia, era uma bicha daquelas mais vingativas entre todas as cobras, tão
vingativa que guardava rancor e esperava até a morte, fosse dela ou de seu
agressor. Pois bem, meu tio sabia quão olímpica seria aquela tarefa, e não
hesitou em estudar o terreno e se precaver de todas as formas para dar a
porrada certeira na criatura. Porém, ele falhou em matar o animal com o
primeiro golpe e, desesperado, ele buscou refúgio dentro de casa, já sabendo
que não haveria mais salvação. No entanto, a fim de se proteger e a seus
filhos, sua mulher simplesmente havia trancado a porta, deixando-o do lado de
fora justamente com a cobra. No meio do desespero, ele se viu obrigado a sair
correndo em disparada mundo afora. Foram muitas horas fugindo daquela serpente
cruel, subindo morro, descendo morro, mais outro morro, e outro morro. Ele
passou a tarde inteira correndo daquela cobra dos infernos, amarela e brilhante
que se apoiava na ponta do rabo e lançava suas presas na direção de qualquer
cristão que atravessasse seu caminho. Foi então que, por um milagre divino, já
que suas forças se esvaiam depois de tamanha odisseia, ele avistou um rio em
seu caminho. Relato aqui, caro leitor, baseado no que os antigos bem conheciam
e replicavam, que toda cobra venenosa pode atravessar riacho ou mesmo um grande
rio, bastando, porém, procurar uma folha seca no chão que seja suficiente para
que a bicha derrame todo seu veneno, e finalmente possa adentrar na água. Quem
bem conhece desses causos, ainda diz que se você ficar de tocaia enquanto uma
cobra faz tal cerimônia, basta se aproximar da folha e derramar todo o veneno.
Quando a danada voltar para recuperar sua peçonha morrerá de tanta raiva ao
perceber a maldade que lhe fizeram (Convenhamos, por que tanto ódio dos antigos
com esses répteis?). Mas voltando, foi assim que meu tio se salvou da vingativa
papa ova, que, à propósito, é conhecida de outro causo ocorrido em Ponte dos
Carvalhos. Minha mãe conta que lá pertinho de casa, no comecinho dos anos 80,
uma moça, vizinha nossa, se deparou com uma papa ova no quintal de sua casa.
Assustada, ela resolveu matar a cobra com uma paulada, assim como meu tio
fizera, mas sem sucesso. A cobra fugiu e a moça entrou em casa. Porém, caro
leitor, foi aí que começou a épica saga da luta do homem contra a serpente,
pois a bixiguenta da cobra se escondeu entre alguns arbustos e ficou a espreita
da moça. Toda vez que a moça colocava a cabeça do lado de fora da casa, a
vingativa cobra também o fazia lá do seu esconderijo. Isso se repetia
constantemente, e a moça não conseguiu sair de casa durante todo aquele dia. Ao
voltar do trabalho, seu pai logo ficou sabendo da prezepada da moça em tentar
matar uma papa ova sozinha, e, bastante bravo, começou a dizer: “E tu não sabe
que essa cobra só vai se aquietar quando teu caixão sair daqui de casa?!” Mesmo
a contra gosto, à tardezinha, o pai da moça resolveu acabar logo com aquilo, e
tratou de buscar sua espingarda. Ele desentocou o danado do bicho e um duelo
entre homem e serpente se desenrolou na boquinha da noite. Tamanho foi o
acontecimento que alguns vizinhos se reuniram para presenciar tão grandiosa
batalha (naquela época eram raros os muros entre as casas lá no bairro, e as
pessoas circulavam livremente por dentro dos terrenos uns dos outros). De um
lado, o homem empunhando sua espingarda, e do outro a cobra, enorme e
equilibrada sobre sua própria cauda. A bicha era tão grande que praticamente
atingia a mesma altura do seu oponente. O homem mirava na cobra, mas a danada
se esquivava para um lado, então o homem se deslocava e a cobra mudava
novamente sua posição. Isso se repetiu inúmeras vezes, e as pessoas que
assistiam à cena já temiam pela morte do pai da moça, pois, após quase uma
hora, era visível o cansaço do homem e a maior raiva do animal. Foi então que
uma vizinha, já idosa, se aproximou daquele furdunço e, prevendo o pior,
resolveu dar fim logo àquela briga. Ela pegou um cabo de vassoura e se dirigiu
até o duelo, dando uma cacetada certeira na cobra. Segundo aquela senhora, a cobra
já estava tão cega de raiva que nada mais via, senão aquele homem com a
espingarda e, por isso, bastava apenas uma pancada forte para que o bicho desencarnasse
desse mundo.
Uma certa vez, também na
vizinhança, o marido de uma moça recém casada voltou do trabalho e percebeu que
sua mulher e filha dormiam no quarto, mas que havia um estranho barulho vindo
da cozinha. Ao procurar de onde vinha aquele som, ele ficou surpreso ao
perceber que havia metade de uma cobra enorme em baixo do armário. Aquele rolo
de cobra tinha a cabeça e uma parte do tronco, mas parecia cortada, tal qual
tivesse sido torada ao meio, ao passar pela linha férrea do bairro. Ela era tão
forte, que havia quebrado a parte inferior da porta de madeira da cozinha,
entrado na casa e continuava a se debater. Passado o susto, o moço pegou um
facão e matou aquele rolo de cobra perambulante.
Outro causo interessante, que
segundo minha mãe é verídico (Ah, caro leitor, como se os outros causos
relatados aqui não fossem?!), foi o de um menino de quatro anos que, ao buscar
uma bola em baixo da cama em seu quarto, acabou levando uma mordida. O menino
foi levado ao hospital, mas terminou falecendo sem ninguém saber o que
realmente havia lhe mordido. Após investigação na casa da criança, a perícia, surpreendentemente,
descobriu um ninho com 33 cobras jararacas morando em um buraco gigantesco em
baixo de sua cama!
Finalmente, não posso deixar de falar de uma cobra também
bastante cruel, a tal da cipó. Essa cobra é tão, mas tão ruim, que seu veneno
tem ação praticamente eterna, visto que o indivíduo que fosse picado pelo bicho
jamais engordaria em toda vida, ficando magro e seco igualzinho à cobra cipó. A
cobra casco de burro é outro bicho ruinzinho que só ele, porque de tão pequenina,
consegue se enfiar entre os cascos de equinos e bovinos, e ao menor passo em
falso do animal, a vingativa serpente anã lhe pica e tira sua vida.
Esses e outros causos de cobras fantásticas eram muito
comuns na região, certamente porque cobras sempre despertaram medo e fascínio
no ser humano. E em uma comunidade onde nem luz elétrica havia, não era de
espantar ouvir uma série de causos sobre esses incríveis seres, cujo imaginário popular nos liga desde longínqua data.
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