domingo, 24 de abril de 2016

Comadre Florzinha

A Comadre Florzinha é uma daquelas assombrações tipicamente pernambucanas, uma entidade protetora das matas, das plantas e dos animais silvestres, que habita(va) desde grandes florestas até capoeiras perdidas no meio de plantações de cana de açúcar, ou mesmo um bonito quintal cheio de florezinhas coloridas e muita folhagem.  Tia Ana conta que sua mãe, Dona Júlia, lá no Alto da Foice, mesmo lugar onde o fabuloso Tutu realizava suas peripécias nos anos 40, costumava ver a Comadre Florzinha no aceiro de uma mata, que havia atrás de sua casa. Os moradores locais frequentemente deixavam mel em uma tigela para a Comadre, uma espécie de agrado para ela não se irritar e sair açoitando os cachorros ou mesmo as pessoas com seus longos cabelos em dolorosas cipoadas. Essa entidade também aparecia comumente nos engenhos e, lá em Ponte dos Carvalhos, também fazia suas aparições. Duas vizinhas nossas viram, por inúmeras vezes, a Comadre Florzinha nos quintais das casas da vizinhança, fosse passeando entre os jardins floridos, maltratando algum cachorro moribundo com seus longos e brilhantes cabelos louros, ou mesmo brincando com algumas crianças que achavam que ela era uma menina comum desse mundo dos encarnados. Eu nunca vi a tal da comadre, mas lembro-me que, quando criança, não eram raras às vezes em que uma amiga minha desmaiava por ter visto a tal da menina lá em sua casa, fosse no quintal ou no jardim. Em meio a uma brincadeira, quando ela esbugalhava os olhos e ficava amarela que nem barro, era certeza que ela tinha avistado a Comadre.

domingo, 17 de abril de 2016

Tá correndo bicho: a menina e as ovelhas

Esse talvez tenha sido o primeiro causo que ouvi, quase que em tempo real, sobre uma criatura terrível que perambulava tão próxima a nosso bairro. Eu tinha meus seis a sete anos, e nunca me esquecerei do dia em que Tia Tereza, uma comadre de mainha, foi nos visitar em Ponte dos Carvalhos. Ela não deve ter demorado mais do que duas horas lá em casa, conversando com minha mãe, mas continuei lembrando aquela conversa por anos da minha infância. Hoje em dia, confesso que muitos detalhes se esvaíram, mas ainda me recordo da história em si.

Ela começou a contar que há poucos dias, em um sítio do Engenho Ilha, ali pertinho do bairro, havia ocorrido algo realmente sinistro. Inclusive, ela trouxe consigo um álbum onde havia algumas fotografias, e fez questão de mostrar para minha mãe. Eu, por ser pequena, nunca vi as fotos, e fiquei por anos imaginando o que elas poderiam ter de tão sinistras. Tia Tereza contou para minha mãe que tinha bicho correndo na região. “Bicho correndo” significava que alguma criatura realmente medonha e sedenta por sangue corria todas as noites, causando a morte de muitos animais e assustando aos homens e outras criaturas da terra. Contudo, o caro leitor deve perceber que a expressão “tá correndo bicho” sempre e sempre se referia a algo que não era desse mundo. Ouvir tudo aquilo me causou arrepio, medo e ao mesmo tempo fascínio na ocasião. Afinal, não eram todos os anos em que se tinha notícia que uma criatura mitológica estava à solta, e tão perto da gente.  Minha mãe replicava com suas explicações sobre o porquê de bicho estar correndo. Segundo a população local, quando um filho ou filha espancava seus pais, certamente ele ou ela estaria maldiçoado a se transformar em um bicho sinistro que correria durante sete noites a cada sete anos, até o dia de sua morte. Bom, então tia Tereza continuou dizendo que fazia poucos dias que uma mocinha, filha do dono de um sítio, presenciou algo apavorante. Essa menina criava algumas ovelhas, que todas as noites dormiam ao relento, mas muito próximas à casa do sítio. Nesta fatídica noite, a menina ouviu alguns balidos baixinhos das ovelhas, como se estivessem sendo importunadas por alguma coisa. Então, a menina levantou-se da cama e olhou pela brecha estreita da janela de madeira. Foi então que ela ficou surpresa ao ver uma espécie de bicho enorme, que não era cachorro, lobo, onça ou qualquer coisa parecida com o que se conhecesse lá pelas bandas do Cabo. Ela, apavorada de medo, não conseguiu se mexer, e ficou ali quase que paralisada, vendo suas ovelhas, uma a uma, sendo atacadas pelo bicho medonho. Ao amanhecer, a menina, que mal havia pregado os olhos durante toda aquela noite maldita, levantou-se e se dirigiu até a porta da frente. Ao sair da casa, se deparou com a triste cena, em que todas suas ovelhas estavam, de fato, mortas, secas, sem qualquer gota de sangue e tinham apenas dois orifícios meio azulados na região do pescoço. O pai da menina tirou algumas fotografias daquela verdadeira e triste chacina de ovinos, e enviou o filme para a revelação, guardando-as depois em um álbum (Eu sei, bizarro! Mas como não havia internet, era assim que as coisas eram registradas, ora!). Isso explica o álbum que tia Tereza trazia emprestado naquele dia, e atualmente bem posso imaginar que aquelas fotos mostravam apenas ovelhas mortas com marcas no corpo, mas nada de monstros aterrorizantes captados em alta resolução (o que ingenuamente imaginei na época). De qualquer forma, esse fato deve ter sido seguido de um ou outro registro de ataque a animais nas redondezas, e logo depois tudo se acalmou. Não ouvimos mais falar de bicho correndo por alguns anos, e a história ficou esquecida.

sábado, 9 de abril de 2016

Visagem na madrugada

No início da década de 80, o bairro de Ponte dos Carvalhos, principalmente no trecho onde morávamos, era bastante ermo e, ao sair tarde da noite, raramente se via uma viva alma nas ruas. Porém, em uma certa noite, quando minha tia Ana voltava para casa após ter saído em busca de um remédio para minha mãe, ela percebeu que não caminhava sozinha pelas ruas. Ao virar a esquina da avenida principal com a rua da antiga “sinuca”, um bar muito conhecido naquela região do velho Engelho Ilha, ela instintivamente olhou para trás e percebeu que havia uma mulher com um longo e esvoaçante vestido vermelho e que andava a passos largos em sua direção, praticamente cambaleaando ou balançando no ar. Nesse instante, minha tia se arrepiou da cabeça aos pés e percebeu que aquilo não se tratava de uma pessoa em carne e osso, mas sim de uma assombração que, sabe-se lá o porquê, cismou de correr atrás dela, justamente quando ela dobrava a esquina daquela encruzilhada. Sem raciocinar muito para entender o que era aquela assombração, e por que estaria atrás dela, tia Ana começou a fugir desesperada daquela mulher assombrada com um vestido vermelho e cabelos esvoaçantes. Quanto mais ela corria, mais perto a mulher chegava. Como naquela época todas as ruas do antigo Engenho Ilha eram de terra batida, e para ser sincera, até pouco tempo ainda eram, tia Ana se danou a pisar nas poças de lama e a perder os chinelos, chegando finalmente em casa esbaforida e aterrorizada. A assombração sumiu quando finalmente ela dobrou a esquina da rua onde morava. Ao chegar em casa, que ainda era iluminada por lampião, ela contou o ocorrido a minha mãe, que sempre diz que nunca viu minha tia tão descabelada e enlameada semelhante àquele dia. Parece mesmo que essa assombração costumava habitar aquele trecho do bairro, pois alguns moradores relatam que, até há alguns anos atrás, essa tal mulher de vermelho ainda aparecia nas ruas, sempre depois da meia noite, correndo atrás de pobres almas vivas desavisadas. 

O Papa Figo de Dois Irmãos

Tia Ana conta que seus vizinhos, no Alto da Foice, relatavam um curioso caso sobre uma família abastada, que morava em um casarão no bairro de Dois Irmãos em Recife. Segundo os relatos, os donos da casa frequentemente contratavam uma ama de leite, cuja função seria amamentar um suposto bebê da família. Porém, ao chegar a casa, logo a ama percebia que sua tarefa se tratava de algo um tanto quanto mórbido, pois ela deveria amamentar não uma criança, mas um adulto enfermo, cuja enfermidade supostamente seria atenuada com uma dieta, digamos, bastante estranha. Uma das amas de leite contratada para o serviço, terminou por concordar em amamentar o homem, visto que seria muito bem remunerada. Mas, tamanha foi sua surpresa ao perceber que o homem sugava tão fortemente seus seios, exaurindo todo seu leite e chegando até mesmo a sugar seu próprio sangue. A mulher, apavorada, saiu correndo do casarão, pulando o muro e sem receber nada em troca pelo serviço. Nesse ponto, caro leitor, você deve estar se perguntando onde o Papa Figo entra nessa história bizarra. A questão é que o homem enfermo era portador de lepra ou hanseníase, o que naquela época levava a graves deformações por falta de tratamento, incluindo as orelhas caídas e aparentemente crescidas, diagnóstico certeiro, para a maioria das pessoas, de que o indivíduo tratava-se mesmo de um Papa Figo – um comedor de fígado humano, especialmente de meninos, muito conhecido em Recife e arredores. Unindo a aparência do moribundo ao hábito grotesco de alimentar-se de leite materno, esse boato terminou correndo pelos bairros mais humildes, onde provavelmente moravam outras possíveis amas de leite, que passaram pelo mesmo sinistro pesadelo.     

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O arruaceiro que ficava invisível

Costumava contar tia Ana que, durante sua infância por volta dos anos 40, no Alto da Foice do bairro Casa Amarela em Recife, um rapaz apelidado de Tutu era conhecido por suas brigas e confusões. O antigo Alto da Foice, hoje em dia chamado de Alto Nossa Senhora de Fátima, era assim chamado por causa das constantes brigas de foice entre os moradores. Era costume comum, naquela época, que alguns moradores fizessem grandes festas em seus quintais, onde havia muita dança, comida e bebida à vontade. Tutu, por já ser conhecido por suas intromissões nas festas alheias, criando desavenças e, por muitas vezes, encerrando a comemoração, nunca era convidado. No entanto, Tutu  sempre aparecia de penetra nas festas, e já macaqueados com a situação, o pessoal já dizia amedrontado:  “Lá vem Tutu!”. O danado do Tutu entrava nas festas, fazia bagunça, brigava com todo mundo, e só saia da festa quando a polícia era chamada. O tal do Tutu, mesmo seguido pela polícia, se envultava na frente dos guardas, que ficavam perdidos sem saber onde o danado do rapaz havia se metido. O povo falava que Tutu se envultava porque, na verdade, havia feito um feitiço poderoso, capaz de deixá-lo invisível ou trasformar-se em um objeto ou um animal. O feitiço consistia em encontrar um gato preto sem sinal de cor alguma, colocá-lo vivo em um caldeirão no fogão e esperar pelo seu cozimento até sua completa diluição. Feito isso, o passo seguinte consistia em separar todos os ossos do gato e, na frente de um espelho virgem, levar à boca ossinho por ossinho, fazendo uma determinada oração. Quando, o ossinho certo fosse posto na boca, o indivíduo não mais veria sua imagem no espelho. Assim, Tutu continuava a fazer suas peripécias pelo Alto da Foice, ora fazendo prezepadas com os vizinhos, ora se envultando e fugindo da polícia.